Dois dos mais célebres torturadores que reinaram nos porões da ditadura militar (1964-85) — Sérgio Paranhos Fleury e Octávio Gonçalves Moreira Júnior — receberam tratamento de herói no livro secreto do Exército. Ambos são chamados de “doutores”.
Ao referir-se a Fleury, delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de São Paulo, o livro afirma que ele era um “incansável lutador contra o terrorismo no Brasil”.
Na década de 1960, ele se destacou como um dos líderes do Esquadrão da Morte no estado. Por sua capacidade de investigação e aplicação de métodos brutais de tortura, que incluíam pau-de-arara, choques e afogamento, Fleury foi requisitado para trabalhar no Destacamento de Operações de Informações (DOI), órgão criado no governo do general Emílio Garrastazu Médici cuja missão era investigar e aniquilar os grupos de oposição ao regime, sobretudo aqueles envolvidos com a luta armada. Durante mais de uma década, o delegado se tornou um dos símbolos da repressão, sendo protegido pelo serviço secreto da Marinha, o Cenimar.
Colega de Fleury no Dops e um torturador temido nos porões da repressão, o delegado Octávio Gonçalves Moreira Júnior, conhecido como Otavinho, foi tratado como mártir no livro secreto do Exército. Numa tarde de fevereiro de 1973, quando voltava da praia, no Rio, Otavinho foi fuzilado por guerrilheiros da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), Aliança Libertadora Nacional (ALN) e Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR).
Depois de descrever o episódio, o livro secreto se derrama em elogios ao delegado. “Na luta contra a subversão comunista, Otavinho havia demonstrado sua inabalável profissão de fé no regime de liberdade. Além disso, pela sua educação e afabilidade, (…) era muito estimado nos órgãos de segurança, constituindo-se, por tudo isso, num alvo compensador para o terror.”
Ditadores
O livro também não poupa elogios aos generais Arthur da Costa e Silva e Emílio Garrastazu Médici. Pela dureza no combate aos opositores do regime militar, o período em que ambos estiveram à frente da Presidência da Republica (1967-74) é conhecido como “os anos de chumbo”.
A posse de Costa e Silva é descrita no livro do Exército como um “reencontro (do país) com a ordem constitucional e o estado de direito”. Com seu “tom franco”, sua “mensagem de renovação” e a “clareza com que encarnava a realidade vivida pelo país”, o general “abriu esperanças” no Brasil, afirma a obra. “Iniciava-se a volta à normalidade”, diz o livro.
Um mês depois de empossado, Costa e Silva criou o Centro de Informações do Exército, o serviço secreto da Força. Na ditadura, o CIE se destacou como vanguarda da repressão. Em 1986, um ano depois do término do regime militar, o órgão foi incumbido pelo então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, de tocar o Projeto Orvil (orvil é a palavra livro ao contrário), que produziu o Livro negro do terrorismo no Brasil.
Ao narrar os seqüestros de diplomatas estrangeiros na década de 1970 e a decisão do governo Médici de aceitar trocá-los por presos políticos, conforme exigiam os seqüestradores, o livro afirma que a postura do general representa o “respeito aos direitos humanos sem aspas”, que “se ajustava aos sentimentos humanitários da população”.
Especialista em questões militares, o cientista político Jorge Zaverucha, da Universidade Federal de Pernambuco, contesta a afirmação. “O livro não traz evidências sobre esta afirmação (‘respeito aos direitos humanos, sem aspas’). O que havia eram violações aos direitos humanos.”
... e pau na Igreja
Do início ao fim do livro secreto do Exército, está presente o rancor da linha-dura da Força com a Igreja, que durante a ditadura (1964-85) se colocou na linha de frente do combate à tortura, à eliminação de presos políticos e à falta de liberdades coletivas e individuais.
Já na introdução da obra, há uma menção indireta ao Brasil: nunca mais, livro lançado pela Arquidiocese de São Paulo, em maio de 1985, dois meses após o fim do regime militar, para denunciar tortura e morte de presos políticos. O Livro negro do terrorismo no Brasil foi de fato escrito como uma resposta ao Brasil: nunca mais.
“Violência, nunca mais”, brada o livro do Exército ao descrever o atentado terrorista desferido por guerrilheiros de esquerda no aeroporto do Recife, em 1966, que visava a morte do então presidente Arthur da Costa e Silva. O general saiu ileso do atentado, que acabou, no entanto, matando o jornalista Edson Regis de Carvalho e o vice-almirante Nelson Gomes Fernandes.
Ainda na introdução, o livro diz que as vítimas de ações de grupos armados de esquerda “não estão incluídas na categoria daquelas protegidas pelos ‘direitos humanos’ de certas sinecuras e nem partilham de uma ‘humanidade comum’ de certas igrejas”. Depois, conclui: “Nem parece que a imagem de Deus, estampada na pessoa humana, é sempre única”. A afirmação é uma menção velada a uma frase do então arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, escrita na abertura do Brasil: nunca mais (“A imagem de Deus, estampada na pessoa humana, é sempre única”).
A obra do serviço secreto do Exército faz um alerta: “Essa Igreja está sabidamente infiltrada (…) por agentes dessa mesma ideologia (comunista), como ficará documentado ao longo deste livro”. Um capítulo inteiro — “O projeto do clero dito progressista” — é dedicado a críticas à Igreja e a religiosos que se destacaram na oposição ao regime militar.
“Asneiras”
Os frades dominicanos de São Paulo são um alvo especial do livro, pelo apoio que deram ao ícone da guerrilha urbana no país, o guerrilheiro Carlos Marighella, da Aliança Libertadora Nacional (ALN). A ligação entre Marighella e os dominicanos foi desbaratada pela repressão em 1966. Numa ação coordenada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, o guerrilheiro foi morto depois que vários dominicanos foram presos e torturados. Uma versão do episódio é narrada no livro Batismo de Sangue, de Frei Betto, que em breve chegará aos cinemas.
Citado no livro do Exército, o frei dominicano Osvaldo Resende Júnior rebate as críticas da obra. “Uma das missões da Igreja é defender a vida e a dignidade da pessoa humana, da qual eles (militares que escreveram o livro) fazem pouco caso. O que está ali é um amontoado de asneiras em relação à Igreja”, diz ele. “Esse grupo de oficias (que escreveu o livro), hoje aposentados, confunde o Brasil e o estado brasileiro com o grupo deles. É justamente contra isso que, durante a ditadura, se levantaram uma boa parte da opinião brasileira, da juventude e a Igreja. Com que direito os militares usaram as armas que lhe foram entregues para proteger a população para impedir essa mesma população de se manifestar? Nesse sentido, a Igreja fala muito mais em nome do Brasil que esses oficiais”, afirma frei Osvaldo.