Ao tomar posse como presidente da República, Jair Bolsonaro prometeu combater “ideologias nefastas” que destroem valores e tradições do país. Fez isso, entretanto, por meio de dois discursos que eram pura retórica ideológica, afirmam intelectuais ouvidos pela Folha.
No primeiro pronunciamento, no Congresso, defendeu a necessidade de livrar o país de “amarras ideológicas”.
No segundo, após receber a faixa presidencial, afirmou que não se pode deixar que “ideologias nefastas venham a dividir os brasileiros”. “Ideologias que destroem nossos valores e tradições, destroem nossas famílias, alicerce da nossa sociedade”, completou.
Na praça dos Três Poderes também disse que aquele era o dia em que o povo começaria a se “libertar do socialismo, se libertar da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”.
Nos dois momentos, subentende-se que Bolsonaro associa a palavra ideologia ao pensamento de esquerda, ao qual se apresenta como feroz opositor.
“O significado dado por ele é exatamente o significado de alguém que tem ideologia. Ele exprimiu uma posição ideológica de extrema direita que é contra os princípios básicos da democracia”, diz Roberto Romano, professor aposentado de ética e filosofia da Unicamp.
Segundo ele, Bolsonaro perdeu a oportunidade de se apresentar como presidente de todos os brasileiros e se dirigiu apenas a seus seguidores, aos que compartilham de suas crenças.
”Foi um discurso de ruptura, algo bastante diverso do pensamento conservador clássico, pelo qual tenho muito respeito. Não tocou em medidas concretas para modificar procedimentos do Estado e da sociedade. Falou apenas de coisas abstratas, que chamam a atenção pelo aspecto emocional. Ele só foi ideológico, mas se escusa disso dizendo que os outros é que são ideológicos, mas ele não.”
E o que, afinal, à luz da tradição filosófica, significa a palavra ideologia? Romano explica que o conceito surgiu no início do século 19, criado pelo francês Destutt de Tracy, para descrever a formação das ideias, das crenças que fornecem os pressupostos para a interpretação dos fatos. Nesse sentido, é um termo neutro, não restrito a um único campo do espectro político.
A carga semântica negativa dada ao conceito teve uma de suas origens nos textos de Karl Marx, para quem a ideologia é um mascaramento da realidade, uma falsa consciência que opera para preservar os interesses das classes dominantes.
Quem estivesse sob o domínio dessa visão distorcida precisaria ser libertado —e nesse ponto, curiosamente, Bolsonaro parece estar alinhado ao teórico do comunismo.
“É engraçado, né? Marx, o grande alvo das críticas de Bolsonaro, foi um dos primeiros a criticar a ideia de ideologia. Isso mostra que o redator do discurso é um ignorante em história da cultura ocidental moderna”, diz Romano.
Mais ligado ao campo conservador, Francisco Razzo, mestre em filosofia pela PUC, vê em parcela da direita brasileira um discurso combativo e pouco sutil, em que o adversário é demonizado, o que provoca um achatamento do discurso público e político.
“Bolsonaro fala em combater a ideologia como se ele não tivesse uma também, como se ele visse as coisas tais como elas são, e seus adversários estivessem mais próximos da fantasia.”
Autor dos livros “A Imaginação Totalitária” e “Contra o Aborto”, ambos da editora Record, Razzo tem especial apreço pela concepção de ideologia dada por Hannah Arendt. A pensadora alemã, conta ele, entendia o termo como uma visão tão coerente de mundo, tão fechada a argumentos alheios, que chega a se anteceder aos fatos. Todo ideólogo, assim, tem sempre razão, quer conformar a realidade a suas crenças.
“Esse é o risco do poder, de todo poder. O político quer olhar o mundo a partir de sua ideia de mundo e usar a força coercitiva do Estado para enquadrar a sociedade”, diz.
“Bolsonaro, no meu entender, peca nisso. Ele não percebe que, no fundo, é só mais um ideólogo no poder. A diferença é que ontem era um de esquerda; hoje, um de direita.”
Razzo também afirma ver com muita desconfiança os trechos em que Bolsonaro falou em “reestabelecer padrões éticos e morais” supostamente deformados pela esquerda. Não é papel do governo se ocupar disso, diz.
“Suspeito muito de quem pretende usar o poder para fazer essas transformações. Seja para revolucionar um estado de coisas, que seria o caso da esquerda revolucionária, seja para restaurar um estado de coisas”, comenta. “Fora que esse papo de "todos juntos", de "uniões de famílias", me parece muito coletivista. É o contrário do conservadorismo clássico, que é prudente, cético.”
Historiador dedicado ao estudo da esquerda no Brasil, Daniel Aarão Reis afirma que Bolsonaro levou aos discursos de posse o hábito populista de inventar fantasmas a serem combatidos. Entende que a estratégia soa convincente porque o presidente parece de fato acreditar neles.
Na visão de Reis, por exemplo, é um equívoco completo de análise dizer que há uma ameaça socialista no Brasil.
O historiador argumenta que os governos petistas de Lula e Dilma Rousseff foram herdeiros da política de conciliação de Getúlio Vargas, algo bem diverso do socialismo.
“Houve até uma ilusão de que o PT traria uma ideia nova, mas apenas retornou ao varguismo. O nacional estatismo petista buscou unificar o país com reformas moderadas que integrassem as camadas mais pobres, mas sem pôr em risco o capitalismo.”
Embora o artigo primeiro do estatuto do PT diga que o partido tem o objetivo de construir “o socialismo democrático”, Reis considera essa referência bastante vaga. “Isso nunca foi tema de uma reflexão aprofundada, nunca foi levado a sério no partido.”
De toda forma, diz, a ideia de “ameaça socialista” foi incorporada por parte significativa do eleitorado, tanto pela relação de conciliação do PT com o socialismo autoritário (Cuba, Venezuela) quanto “pelos erros colossais que os petistas cometeram e se recusam a assumir”. Na Folha
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