'Um equívoco frequente de governos e instituições financeiras internacionais é entender que crises econômicas justificariam todo e qualquer corte em serviços essenciais e em direitos econômicos e sociais, quando justamente é o oposto', disseram
Sete relatores especiais da ONU criticaram as medidas de austeridade do governo de Michel Temer e pediram que as políticas econômicas sejam "reconsideradas" para que questões de direitos humanos sejam colocadas no "centro" da estratégia do governo. Para eles, a população tem "sofrido severas consequências".
"Pessoas vivendo em situação de pobreza e outros grupos marginalizados estão sofrendo desproporcionalmente como resultado de medidas econômicas rigorosas em um país que já foi exemplo de políticas progressistas de redução da pobreza e de promoção da inclusão social", afirmaram os especialistas em um comunicado à imprensa publicado pelas Nações Unidas, em Genebra, nesta sexta-feira.
Os relatores que assinaram a carta são Juan Pablo Bohoslavsky, especialista em dívida externa e direitos humanos; Léo Heller, relator especial sobre os direitos humanos à água e ao esgoto sanitário; Ivana Radacic, presidente do grupo de trabalho sobre a questão da discriminação contra a mulher na lei e na prática; Hilal Elver, relatora especial para o direito humano à alimentação; a canadense Leilani Farha, especialista em direito à habitação adequada; Dainius Puras, responsável por saúde; e Koumbou Boly Barry, relatora para direito à educação.
Não é frequente que um número elevado de relatores se unam para questionar, de forma conjunta, as políticas de um país.
Um dos pontos destacados pelo grupo é o aumento das taxas de mortalidade infantil no Brasil, pela primeira vez em 26 anos. "Esse aumento, que pode ser atribuído a vários fatores - incluindo a epidemia de zika e a crise econômica -, é motivo de muita preocupação, especialmente com as restrições orçamentárias para o sistema público de saúde e outras políticas sociais, que comprometem severamente os compromissos do Estado brasileiro de garantir direitos humanos para todos, especialmente para crianças e mulheres", disseram.
"Algumas das decisões de política financeira e fiscal dos últimos anos afetaram o gozo de vários direitos, incluindo habitação, alimentação, água e esgotamento sanitário, educação, seguridade social e saúde, e estão ampliando desigualdades preexistentes", insistiram.
Para os relatores, as medidas destacadas pelo governo para mitigar os efeitos das decisões econômicas "são em grande medida insuficientes." "Mulheres e crianças vivendo em situação de pobreza estão entre as pessoas mais afetadas, como é o caso também de afrodescendentes, populações rurais e pessoas que residem em assentamentos informais", disseram. "Lamentamos que os esforços com relação às políticas de enfrentamento da discriminação sistêmica contra mulheres não tenham sido mantidos "
Os relatores enviaram uma carta ao governo, pedindo esclarecimentos e se dizem dispostos a manter um diálogo. Contudo, eles insistem que medidas de austeridade não devem ser vistas como "a primeira ou a única solução para problemas econômicos, principalmente considerando seu impacto sobre os mais vulneráveis". "Um equívoco frequente de governos e instituições financeiras internacionais é entender que crises econômicas justificariam todo e qualquer corte em serviços essenciais e em direitos econômicos e sociais, quando justamente é o oposto", disseram.
"Medidas de austeridade deveriam apenas ser adotadas depois de uma análise cuidadosa de seus impactos, particularmente quando afetam os indivíduos e grupos mais desassistidos. Elas devem ser consideradas somente depois feita uma compreensiva avaliação de impacto de direitos humanos", defenderam.
"Essa avaliação deveria contemplar seriamente alternativas de políticas que causem menos dano, tais como aumentar tributos dos mais ricos, antes que os mais pobres tenham de suportar um fardo ainda maior. Passos para a redução da dívida pública e para a recuperação da sustentabilidade não só financeira, mas também social, deveriam ser igualmente considerados", lembraram.
A carta ainda destaca problemas na política de segurança alimentar e na área de habitação, com o que chamam de "cortes drásticos" no programa "Minha Casa Minha Vida". "Com relação aos serviços de água e esgotamento sanitário, o orçamento será reduzido em um terço, de acordo com as previsões de 2018", diz o comunicado de imprensa.
"A Emenda Constitucional n° 95, também conhecida como EC do Teto, que limita o teto de gastos públicos nos próximos 20 anos, não deixa qualquer esperança de melhoras no curto prazo", completaram os relatores. "Esse fato torna ainda mais necessária a revisão das políticas econômicas pela lente dos direitos humanos."
O grupo destacou ainda que "perseguir objetivos macroeconômicos e de crescimento não pode se dar em detrimento dos direitos humanos. A economia deve servir à sociedade, não dominá-la".
A questão dos cortes no orçamento brasileiro tem sido alvo de embates entre a diplomacia brasileira e os relatores da ONU. No início do ano, o governo brasileiro suspendeu a visita ao País do relator Juan Pablo Bohoslavsky, que ocorreria entre os dias 18 e 30 de março. Ele faria um exame do impacto das medidas de austeridade implementadas pelo governo nas áreas sociais, de educação e saúde.
O jornal O Estado de S. Paulo apurou que, no governo, a justificativa é que a viagem foi apenas adiada em razão da saída da ministra de Direitos Humanos, Luislinda Valois, demitida pelo presidente Michel Temer (MDB). Mas na ONU, fontes revelaram à reportagem que nenhuma nova data foi apresentada pelo governo para que a visita possa ser realizada.
Em 2017, o governo brasileiro votou contra uma resolução que renovava o mandato do relator da ONU para avaliar o impacto de políticas fiscais em direitos humanos. Ao lado de EUA, Europa e Japão, o Itamaraty alegou que a proposta ia além do mandato que a entidade poderia dar a um relator para examinar políticas econômicas nos diferentes países.
No projeto de texto, os governos "reconheciam que programas de ajustes estruturais limitam os gastos públicos, impõem tetos de gastos e dão atenção inadequada para serviços sociais". O texto ainda indicava que apenas "poucos países podem crescer" diante dessas condições.
O governo de Michel Temer não aceitou o texto na ONU. Ao discursar, a embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, insistiu que acredita que governos possam fazer ajustes fiscais e, ainda assim, serem "consistentes" com os serviços sociais que oferecem à população.
"A expansão de gastos públicos nos níveis observados nos últimos anos não iria garantir progresso social no Brasil. Pelo contrário, a estrutura dos gastos públicos não seria sustentável, com efeitos desastrosos para nossa economia e que poderiam colocar em risco os avanços sociais que queremos proteger", completou.
Apesar do voto contrário do Brasil, a resolução acabou sendo aprovada no Conselho de Direitos Humanos da ONU, por 31 votos a favor e 16 contra. Do Estadão Conteúdo
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