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quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Muitos colarinhos fora dos presídios

Não é um episódio, é uma novela: um araponga, atormentado em suas convicções democráticas, vaza para uma revista semanal um diálogo de escuta telefônica onde o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, tem uma cândida conversa com um senador da oposição, Demóstenes Torres (DEM-GO) e acusa: a Agência Brasileira de Informações (Abin) teria grampeado indiscriminadamente governistas e oposicionistas e, no meio do caminho, monitorado o presidente da mais alta corte do país. Foi a Abin, disse a revista. Isto posto, move-se a máquina de fazer crises sobre algumas premissas, tidas como definitivas: a Abin é o Big Brother poderoso e o governo não tem controle sobre ela; ao mesmo tempo, o governo manteria controle sobre os demais poderes por meio da Abin, em especial sobre o presidente do STF.

Nesse intervalo difuso, produziu-se manifestações indignadas e interpretações sobre o fato de todas as ordens. São salutares os protestos dos que zelam pelo direito constitucional à privacidade. Para um país que viveu sob ditaduras, e para uma Abin cuja origem é o Serviço Nacional de Informações (SNI) dos governos militares, a menção à espionagem - provavelmente com fins políticos - causa arrepios. E a suposição de descontrole de um órgão de informações, pânico.


Todavia, os fatos que foram produzidos a partir do fato também causam arrepios. Nos dias que sucederam a circulação de "Veja", sites ligados a grupos militares linha-dura, ou de civis de extrema-direita, passaram a apontar dedos acusadores para uma "KGB" brasileira que estaria nas mãos do PT e prepararia... - quem sabe o que prepararia? Talvez uma revolução socialista por cima dos escombros do muro de Berlim? E, afinal, qual é mesmo a denúncia? A de descontrole ou aparelhamento dos órgãos de segurança?

Esse exagero em alguns momentos escorrega para as páginas dos jornais, mas é copioso nas páginas desses sites. Um deles chega a mostrar como evidência da relação Abin-KGB (que, dizem, ainda é comunista, e ainda é KGB) o fato de o ministro-chefe do gabinete de Segurança Institucional, general Jorge Armando Felix, a quem está subordinada a Abin, ter ido a Moscou. Felix é chamado de "general do PT"; atribui-se a sua viagem a contatos com a ex-KGB. "O "poderoso chefão" alimenta seus aparelhados agentes petistas, em provocações contra as Forças Armadas, ferindo a Lei da Anistia e afrontando a segurança interna com o seu sucateamento, a desmoralização da PF e a zombaria contra imprensa, Ministério Público e Poder Judiciário", diz um dos colunistas de um site, pouco antes mesmo do episódio "Veja".

Lacerda levou para Abin disputas na PF

A "KGB tupiniquim", como esses sites gostam de se referir à Abin, é um sucedâneo do antigo SNI que incomoda mais pelo poder operacional avulso dos seus agentes - remanescentes ou não da ditadura - do que pelo seu poder institucional. O governo Collor praticamente aniquilou o velho e grande SNI, que, aliás, tinha muito mais poder - inclusive de eliminação física dos opositores - quando atuava em conjunto com os serviços de segurança das três armas e do DOI-CODI do que propriamente como órgão de informação do governo. O SNI trabalhava com "fichas", informação. A parte operacional cabia ao CIEx, ao Cenimar, aos DOPS e aos DOIs, e estes operavam com pessoal das três armas, da Polícia Militar e da Polícia Civil. Tanto é que, nas listas de mortos, desaparecidos e torturados, ninguém declara ter sido torturado nas dependências do SNI, mas nas instalações policiais ou militares. O SNI era o corpo burocrático do regime; os serviços de segurança, seu braço armado. É um tanto surrealista ler textos produzidos por grupos ligados a essa herança do último período ditatorial acusar a Abin de ser comunista. É preciso ter senso do ridículo e algum medo do risco que se corre engolindo essa pílula.

Hoje, a Abin é uma agência com poder institucional reduzidíssimo. Não tem a prerrogativa de grampear. Grampo é com a polícia, e desde que com ordem judicial. Se grampeou, seu chefe cometeu crime. Se agentes grampearam sem ordem do chefe, cometeram crime. Como a Abin não pode legalmente fazer grampos, qualquer prova produzida por seus agentes pode não apenas ser anulada pela Justiça, como anular também todas as outras produzidas por meios legais, dependendo do grau de elasticidade do juiz que for julgar a questão. Tanto a gravação da conversa do presidente do STF, como o seu vazamento, caem como uma luva para os interesses dos acusados pela Operação Satiagraha, Daniel Dantas em especial. Os pecados da Abin - e da PF, se os cometeu junto - não são apenas contra o direito democrático à privacidade. Os agentes da Abin, se realmente grampearam Gilmar Mendes, deram a Dantas a principal peça de sua defesa.

Talvez o grande pecado do ex-diretor da Polícia Federal e diretor afastado da Abin Paulo Lacerda tenha sido o de levar para dentro de uma Abin já com poder bastante reduzido a luta interna de poder da PF. Não é de hoje que grupos da PF, que conviveram em relativa paz no período do governo FHC - ou sob uma dura hegemonia de um único grupo, que evitou de alguma forma uma luta sistemática pelo poder na instituição -, colidem com algum barulho, que não raro vaza para o público externo. A ascensão de Lacerda não conseguiu neutralizar o poder de seu grupo dentro da PF, ao mesmo tempo em que transpôs as mesmas lutas e os mesmos interesses para a Abin.

Se a Abin de Lacerda deu de mão beijada para a defesa de Dantas argumentos para a anulação de provas, existem duplas razões para enquadrá-la. A agência não pode interferir no trabalho da polícia, muito menos para livrar a cara de acusados pelo meio mais fácil, o da anulação de provas que os incriminariam. A Abin também tem que ser mantida sob o estreito controle democrático e não pode servir como instrumento de disputa de poder policial. Da mesma forma, todas as instituições devem zelar para que a democracia brasileira puna com igual rigor ricos e pobres. Os fatos todos confabulam para que mais colarinhos brancos fiquem mais uma vez do lado de fora dos presídios.

Maria Inês Nassif

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