A grande vaia, a antológica, foi aquela derramada sobre Sérgio Ricardo, no Festival de MPB da Record, em 1967. Quem esteve lá, confirma: o público não planejava o linchamento sonoro do candidato. De repente, subiu uma voz agressiva, e logo outra, e mais outra. Em segundos, virou pândega, uma intervenção instintiva no rito da disputa.
Decidido, Sérgio Ricardo pediu calma ao público, e tentou entoar sua Beto Bom de Bola. O pedido de trégua pareceu atiçar ainda mais a ferocidade da turba. Em dado momento, a banda perdeu a concentração e embananou-se toda. Sérgio Ricardo quis parecer resiliente. Parou e proclamou:
- Quando terminar o festival, vou mudar o nome da música para Beto Bom de Vaia.
O resultado não foi o esperado. A campanha agressiva recrudesceu. Até que o cantor perdeu a paciência. Foi até a orelha do povo e gritou:
- Vocês ganharam. Isso é o Brasil subdesenvolvido. Vocês são uns animais!
Em seguida, para delírio dos manifestantes, quebrou o violão sobre um banquinho e deixou o palco, espumando de raiva. Nesse momento, a platéia ria e apupava, numa espécie de mega-orgasmo, festejando a vitória.
A vaia é altamente contagiosa e arrebatadora. Dá prazer e constrói um estranho protagonismo iconoclasta, protegido e anônimo. Constitui-se numa espécie de assédio moral consentido, cuja manifestação é garantida por um difuso conceito de liberdade de expressão.
Se é sempre provocação maliciosa, gera o destempero e concede ao agressor uma justificativa para agir. Carlinhos Brown provou desse veneno, no Rock in Rio de 2001, quando foi espezinhado por uma platéia "estrangeira". Reagiu, e assim ofereceu motivo para que intensificassem o bombardeio de garrafas e copinhos de plástico.
O francês Gustave Le Bon descreveu com detalhes a gênese desses estados alterados de consciência. Em situações diversas, as pessoas diluídas na multidão cedem ao poder da sugestão. Em transe, perdem as inibições e afastam-se de seus padrões morais, mergulhando no mar da irracionalidade. Escreveu Le Bon:
- O sentimento de responsabilidade que sempre controla os indivíduos desaparece completamente. Todo sentimento e ato são contagiosos. O homem desce diversos degraus na escada da civilização. Isoladamente, ele pode ser um indivíduo; na massa, ele é um bárbaro, isto é, uma criatura agindo por instinto.
Se a multidão não é movida pela razão, o agredido nem sempre é um desafeto. Na maior parte das vezes, é um quase desconhecido, ao qual se imputa alguma culpa, algum pecado. O drama tem início com um impropério disparado no ponto G da consciência coletiva. Segue-se o espanto e, logo depois, uma efervescência hormonal. Daí, a graça quase lasciva de aderir à farra, marcada pelo atrito, pela invasão, por uma sinistra dialética de profanação.
No grande grupo, o indivíduo tem alguma certeza de que está incógnito, de forma que se sente liberado para exasperar-se, para sobrepor-se aos códigos de conduta. A tropa de choque da PM sabe disso. Por isso, espalha fumaças dolorosas. O gás lacrimogêneo, ao turvar a visão, dá ao manifestante a impressão de encontrar-se novamente sozinho. É o que o desmobiliza.
Não se fala aqui de nenhuma categoria especial de multidão, nem da hobbesiana nem daquela de Antonio Negri. Tratamos aqui da multidão aleatória, dos que não se conhecem, dos que não tramaram previamente o ataque à vítima. Talvez seja mais aquela que aparece nebulosa, quase como cenário, em "O Homem na Multidão", de Edgar Allan Poe. Trata-se desse bolo humano que pode gestar revoluções ou encobrir o crime e a perversão.
A multidão da vaia nem sempre faz o que deseja e, freqüentemente, goza na contradição. Em 2006, o craque argentino Carlitos Tevez, ídolo da torcida do Corinthians, viu-se na arena dos vaiados, num melancólico empate com o Fortaleza. Seguindo o paradigma da construção de motivos, reagiu e provou da fúria dos que o idolatravam. À porta do estádio, parte da torcida investiu contra seu carro, num episódio que selou o divórcio entre o jogador e o clube paulistano.
Em 2004, João Gilberto foi predado por muitos de seus próprios admiradores, durante sua polêmica apresentação numa casa de shows de São Paulo. Havia gente pronta para pedir um autógrafo, mas que não quis perder a oportunidade única e mágica de azucrinar um semideus. Poderosa, a massa "vaiante" converte-se em uma entidade multitentacular, capaz de topar a briga contra a divindade.
Outros adorados sofreram com essa estranha traição. Em 2000, gente simpática a Daniela Mercury juntou-se a coro de insatisfação, durante uma performance no carnaval baiano. Há quase trinta anos, outro baianao, Caetano Veloso, coleciona encrencas do gênero, trombando por vezes com seu próprio público.
A vaia, portanto, pode vir de onde menos se espera, quando menos se espera. Pode fustigar como "fogo amigo". Pode ser orquestrada ou simplesmente o resultado caótico da amplificação de um ressentimento ainda não perfeitamente decodificado.
No entanto, a vaia é parente da vacina. Com o tempo, fornece uma espécie de proteção. Não raro, leva outra multidão - ainda que com atraso - a acudir o vaiado. Em certos casos, tem ainda o poder de criar mártires.
Nesta abertura de Pan, o presidente Lula converteu-se no alvo da vez. Há quem diga que foi a turma de César Maia, articulada como os psolistas para puxar o "uhhhh". Outros apontam para os rancores da classe média carioca, somente ela capaz de pagar o alto preço dos ingressos para a solenidade. Há quem aponte para esse lado negro da força, essa tendência à maldade presente em cada coração. Aparentemente frágil, piedoso, olhos marejados, o presidente apresentou-se como personagem moldado perfeitamente à malhação. Vulnerável no semblante, serviu como santo a distintas expiações.
Horas depois, na Internet, multiplicavam-se os textos que lastimavam o comportamento do "povo carioca". Até simpatizantes do tucano-pefelismo condenavam a conduta. Se certa patuléia arrotou o deboche, pareceu perfeitamente etílica, de forma que vale o título da canção de Tom Zé: "vaia de bêbado não vale".
Do Jornalista Walter Falceta Jr. por e-mail ao blog Os amigos do Presidente Lula.
Decidido, Sérgio Ricardo pediu calma ao público, e tentou entoar sua Beto Bom de Bola. O pedido de trégua pareceu atiçar ainda mais a ferocidade da turba. Em dado momento, a banda perdeu a concentração e embananou-se toda. Sérgio Ricardo quis parecer resiliente. Parou e proclamou:
- Quando terminar o festival, vou mudar o nome da música para Beto Bom de Vaia.
O resultado não foi o esperado. A campanha agressiva recrudesceu. Até que o cantor perdeu a paciência. Foi até a orelha do povo e gritou:
- Vocês ganharam. Isso é o Brasil subdesenvolvido. Vocês são uns animais!
Em seguida, para delírio dos manifestantes, quebrou o violão sobre um banquinho e deixou o palco, espumando de raiva. Nesse momento, a platéia ria e apupava, numa espécie de mega-orgasmo, festejando a vitória.
A vaia é altamente contagiosa e arrebatadora. Dá prazer e constrói um estranho protagonismo iconoclasta, protegido e anônimo. Constitui-se numa espécie de assédio moral consentido, cuja manifestação é garantida por um difuso conceito de liberdade de expressão.
Se é sempre provocação maliciosa, gera o destempero e concede ao agressor uma justificativa para agir. Carlinhos Brown provou desse veneno, no Rock in Rio de 2001, quando foi espezinhado por uma platéia "estrangeira". Reagiu, e assim ofereceu motivo para que intensificassem o bombardeio de garrafas e copinhos de plástico.
O francês Gustave Le Bon descreveu com detalhes a gênese desses estados alterados de consciência. Em situações diversas, as pessoas diluídas na multidão cedem ao poder da sugestão. Em transe, perdem as inibições e afastam-se de seus padrões morais, mergulhando no mar da irracionalidade. Escreveu Le Bon:
- O sentimento de responsabilidade que sempre controla os indivíduos desaparece completamente. Todo sentimento e ato são contagiosos. O homem desce diversos degraus na escada da civilização. Isoladamente, ele pode ser um indivíduo; na massa, ele é um bárbaro, isto é, uma criatura agindo por instinto.
Se a multidão não é movida pela razão, o agredido nem sempre é um desafeto. Na maior parte das vezes, é um quase desconhecido, ao qual se imputa alguma culpa, algum pecado. O drama tem início com um impropério disparado no ponto G da consciência coletiva. Segue-se o espanto e, logo depois, uma efervescência hormonal. Daí, a graça quase lasciva de aderir à farra, marcada pelo atrito, pela invasão, por uma sinistra dialética de profanação.
No grande grupo, o indivíduo tem alguma certeza de que está incógnito, de forma que se sente liberado para exasperar-se, para sobrepor-se aos códigos de conduta. A tropa de choque da PM sabe disso. Por isso, espalha fumaças dolorosas. O gás lacrimogêneo, ao turvar a visão, dá ao manifestante a impressão de encontrar-se novamente sozinho. É o que o desmobiliza.
Não se fala aqui de nenhuma categoria especial de multidão, nem da hobbesiana nem daquela de Antonio Negri. Tratamos aqui da multidão aleatória, dos que não se conhecem, dos que não tramaram previamente o ataque à vítima. Talvez seja mais aquela que aparece nebulosa, quase como cenário, em "O Homem na Multidão", de Edgar Allan Poe. Trata-se desse bolo humano que pode gestar revoluções ou encobrir o crime e a perversão.
A multidão da vaia nem sempre faz o que deseja e, freqüentemente, goza na contradição. Em 2006, o craque argentino Carlitos Tevez, ídolo da torcida do Corinthians, viu-se na arena dos vaiados, num melancólico empate com o Fortaleza. Seguindo o paradigma da construção de motivos, reagiu e provou da fúria dos que o idolatravam. À porta do estádio, parte da torcida investiu contra seu carro, num episódio que selou o divórcio entre o jogador e o clube paulistano.
Em 2004, João Gilberto foi predado por muitos de seus próprios admiradores, durante sua polêmica apresentação numa casa de shows de São Paulo. Havia gente pronta para pedir um autógrafo, mas que não quis perder a oportunidade única e mágica de azucrinar um semideus. Poderosa, a massa "vaiante" converte-se em uma entidade multitentacular, capaz de topar a briga contra a divindade.
Outros adorados sofreram com essa estranha traição. Em 2000, gente simpática a Daniela Mercury juntou-se a coro de insatisfação, durante uma performance no carnaval baiano. Há quase trinta anos, outro baianao, Caetano Veloso, coleciona encrencas do gênero, trombando por vezes com seu próprio público.
A vaia, portanto, pode vir de onde menos se espera, quando menos se espera. Pode fustigar como "fogo amigo". Pode ser orquestrada ou simplesmente o resultado caótico da amplificação de um ressentimento ainda não perfeitamente decodificado.
No entanto, a vaia é parente da vacina. Com o tempo, fornece uma espécie de proteção. Não raro, leva outra multidão - ainda que com atraso - a acudir o vaiado. Em certos casos, tem ainda o poder de criar mártires.
Nesta abertura de Pan, o presidente Lula converteu-se no alvo da vez. Há quem diga que foi a turma de César Maia, articulada como os psolistas para puxar o "uhhhh". Outros apontam para os rancores da classe média carioca, somente ela capaz de pagar o alto preço dos ingressos para a solenidade. Há quem aponte para esse lado negro da força, essa tendência à maldade presente em cada coração. Aparentemente frágil, piedoso, olhos marejados, o presidente apresentou-se como personagem moldado perfeitamente à malhação. Vulnerável no semblante, serviu como santo a distintas expiações.
Horas depois, na Internet, multiplicavam-se os textos que lastimavam o comportamento do "povo carioca". Até simpatizantes do tucano-pefelismo condenavam a conduta. Se certa patuléia arrotou o deboche, pareceu perfeitamente etílica, de forma que vale o título da canção de Tom Zé: "vaia de bêbado não vale".
Do Jornalista Walter Falceta Jr. por e-mail ao blog Os amigos do Presidente Lula.
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