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domingo, 31 de dezembro de 2006

Estou convicto hoje que sem o Lula nós teríamos conflitos sociais muito violentos no Brasil


ENTREVISTA / CLÁUDIO LEMBO para os assinantes da Folha de São Paulo(aqui).
Magnifíca, vale a pena ler.


Cláudio Lembo diz estar convicto de que, sem Lula, o país viveria "conflitos sociais muito violentos". Na véspera de se despedir dos Bandeirantes, o governador afirma que pilotou um fusca velho, volta a criticar a "minoria branca" e diz que recebeu apelos para que a polícia executasse criminosos do PCC -o que, frisou, não ocorreu. Segundo ele, na oposição há pessoas de esquerda, mas no poder "todos são conservadores".

FOLHA - Governador, um balanço do governo...
CLÁUDIO LEMBO - Não tem muito balanço a fazer.

FOLHA - Na crise do PCC, o senhor responsabilizou a "minoria branca" e disse que, em seu governo falaria tudo, "doa a quem doer".
LEMBO - E falei.

FOLHA - O senhor estava preparado para aquela crise?
LEMBO - Quando cheguei ao governo, a idéia que dava é que SP estava numa situação excepcionalmente boa, financeiramente, socialmente. Cheguei a dar uma entrevista dizendo que estava recebendo uma Maserati, e que eu era um franciscano descalço que não saberia como usar esse veículo tão poderoso. E aí eu constatei que não tinha uma Maserati nas mãos, mas sim um Fusca 68, com o motor meio fundido. Não tinha dinheiro, não tinha gasolina. O motorzinho estava mal. Os presídios estavam explosivos. Aí eu caí na real. Na verdade eu tinha uma situação patética.

FOLHA - Muitos paulistas acreditam que ocupam uma Maserati, em contraponto aos grotões miseráveis do Norte e do Nordeste.
LEMBO - Aqui é muito pior que o Nordeste. No Nordeste, a pessoa tem o sitiozinho dela. Aqui, nas áreas de maior miserabilidade, as pessoas não têm nada. Eu acho que SP tem que ser objeto de análise muito cuidadosa do governante futuro e dos paulistas. O Estado representa 45% da economia brasileira. Porém no ventre de SP existe muita desigualdade e miserabilidade. Locais como Alphaville têm renda per capita de 15 mil dólares/ano; municípios como Ferraz de Vasconcelos, 300 dólares/ano. São 1.600.000 em favelas, sem teto, sem nada.

FOLHA - Há riscos de um novo ataque do PCC?
LEMBO - Os americanos conhecem o 11 de setembro [dia do ataque ao World Trade Center, em 2001], os espanhóis conhecem o 11 de março [ataque terrorista a trens, com 191 mortos, em 2004]. E nós conhecemos o 12 de maio [de 2006, dia inicial dos ataques do PCC]. Não podemos esquecer. E eu tenho sentido que a sociedade já jogou aquele episódio para debaixo do tapete. É um grande equívoco. Hoje os serviços de inteligência estão integrados, os presídios estão disciplinados. Porém podem acontecer coisas violentas novamente. Os recentes ataques no Rio de Janeiro mostraram isso. É um alerta para os 27 novos governadores: ou se integram os Estados, o governo federal e os países limítrofes, ou o galho vai ser maior.

FOLHA - São Paulo não tem condições de equacionar o problema?
LEMBO - O país teria que buscar apoio internacional, de um fundo internacional de apoio a cidades do terceiro mundo. SP ainda tem alguma condição de investimento. Nada excepcional, mas tem -outros Estados estão em situação patética. SP tem também capacidade de alavancar empréstimos. Mas daí tem os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal. Então é um tal de se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. O Poder Judiciário precisaria começar a aplicar penas alternativas.

FOLHA - Por quê?
LEMBO - São 140 mil presos, um número imenso, trágico. Nós estamos querendo adotar o modelo americano e não temos capacidade financeira para sustentá-lo. Isso cria um caos financeiro para o Estado. E nem sei se é bom copiar os EUA. O que tem de gente presa lá é uma loucura. Então, não poderia encarcerar tanta gente no Brasil. Mas o Judiciário não tem cultura da pena alternativa. É a visão brasileira: prende, bate!

FOLHA - O senhor responsabilizou a "minoria branca", e no entanto as pessoas, especialmente as da classe média, argumentam que já pagam impostos, fazem a sua parte.
LEMBO - Não é só a classe média que paga imposto. O alto capital financeiro e industrial também paga. Porém o país tem situações tão graves que eles deveriam ser mais nítidos e claros no apoio à busca de um equilíbrio social. As fundações, por exemplo, são sempre familiares. É só você pegar as fundações existentes em SP, culturais, sociais. Todas têm estrutura familiar. É uma coisa interessantíssima do Brasil: todos só pensam na sua família. As fundações vivem do imposto do governo e ao mesmo tempo só servem a si próprias. Enquanto as fundações americanas apóiam as universidades, no Brasil todos querem tirar uma casquinha. Sempre.

FOLHA - O senhor poderia dar exemplos que vivenciou?
LEMBO - Governar é ouvir pedidos. Desde a Colônia é assim: as corporações estão sempre de chapéu na mão em torno do rei. As que têm mais capacidade de coerção, levam mais. Ou tentam. Na crise do PCC, figuras da minoria branca queriam a lei de talião. Queriam que se matassem todos, para preservar a eles, da minoria branca. Isso foi o que me irritou mais. Nós estávamos num momento extremamente difícil e tínhamos que mostrar que o Estado pode vencer dentro da lei. Telefonaram, e uns poucos vieram aqui.

FOLHA - Quem?
LEMBO - Prefiro não citar. Seria injusto. Eu iria esquecer algum e esse algum seria privilegiado.

FOLHA - Havia pânico?
LEMBO - O pânico foi geral. Nunca vi uma sociedade em pânico, sobretudo as suas lideranças, como naquele momento.

FOLHA - Mas elas pediam que se matasse de que forma?
LEMBO - Que a polícia fosse para as ruas, à noite, fazer execuções.

FOLHA - Mas isso não aconteceu?
LEMBO - Não, não houve.

FOLHA - Mais de cem pessoas foram mortas pela polícia. Houve mortes com características de execução.
LEMBO - Pode haver um caso ou outro, mas para cada caso houve o devido processo legal, que está em curso. Não vi violência maior da polícia. Vi o combate à criminalidade.

FOLHA - Como seus amigos da "minoria branca" reagiram quando disse que ela era "perversa" e "má"?
LEMBO - Houve uma pessoa que telefonou para oferecer padre e psicólogo. Infelizmente, nem o padre se ofereceu nem o psicólogo apareceu. Parece gozação. Mas é absolutamente real. Nem respondi. Imagine fazer terapia no meio do tiroteio do PCC! Já pensou? Parava para fazer análise, e São Paulo à mercê da bandidagem. Muito bem, né?

FOLHA - Na crise, o senhor disse que procurou estudos mais aprofundados sobre o PCC e não encontrou.
LEMBO - Esse é um grande defeito da nossa universidade. Ela fica estudando coisas absolutamente platônicas, românticas, estuda Antônio Conselheiro e não estuda a realidade social das grandes cidades brasileiras. Por que nenhum sociólogo foi entrevistar os presos para entender a origem e a motivação para o crime? A universidade virou novamente uma estrutura elitista isolada da sociedade.

FOLHA - Qual é a sua expectativa em relação ao governo José Serra?
LEMBO - Ele já foi exigido em postos importantes, tem conhecimento da administração pública. Mas acho que ele não deve ter ilusões. Deve saber da gravidade que é isso tudo.

FOLHA - E em relação ao Lula?
LEMBO - Estou convicto hoje de que sem o Lula nós teríamos conflitos sociais muito violentos no Brasil. Ele nasceu na sociedade mais pobre, tem empatia e raiz social profunda. Está procurando afastar as grandes diferenças sociais e, assim, consolidando a democracia.

FOLHA - Alguns definem o governo Lula como um dos mais corruptos...
LEMBO - O PT foi muito pouco cuidadoso com o dinheiro público, portou-se mal. Mas o Lula, pessoalmente, não. O PT trouxe para a política atores novos, o que é muito bom. Hoje o Congresso Nacional tem uma representação popular efetiva. Antes era só a minoria branca. Agora, a representação popular tem um risco: quem nunca comeu melado, quando come se suja, né? A elite sempre se lambuzou, viveu das benesses do Estado. Mas eram mais "cuidadosos". Agora chegou a vez de todos. Mas precisa pôr ordem nisso. É preciso ter ética, senão a sociedade fica muito frágil.

FOLHA - O presidente Lula diz que uma pessoa idosa, com mais de 60, que é de esquerda, tem problemas, bem como um jovem de direita.
LEMBO - Direita eu nunca fui. Fui sempre um conservador. Mas não burro. Vejo o que está aí. Vivemos uma situação social próxima de um vulcão.

FOLHA - E o Lula?
LEMBO - Nunca foi de esquerda. Não existe região de SP mais pequeno-burguesa que o ABCD, que teve fábricas, indústrias e uma classe média originada dos italianos, com pequenas chácaras. É uma região de pequenos-burgueses e portanto o presidente Lula é um pequeno-burguês.

FOLHA - E o Serra, que tem origem de esquerda -e mais de 60 anos?
LEMBO - Ele é um italianinho típico da Mooca, né? Ele tem essa qualidade de ser um homem, no fundo, conservador. É muito família, né? O Brasil é conservador, reacionário. As pessoas são de esquerda quando estão na oposição. No poder, são todos conservadores.

FOLHA - O senhor teve atritos com o PFL. Continuará no partido?
LEMBO - Continuo. O PFL disse que me esperaria na curva quando eu deixasse o governo. Estou nela, pronto a responder aos processos inquisitoriais. Mas não creio que isso aconteça. Eu vou ser um mero cidadão e eles vão me esquecer. Mas eu não vou esquecê-los.

FOLHA - O senhor acredita em uma reestruturação partidária?
LEMBO - O quadro partidário está razoavelmente consolidado. O PMDB é um partido de raiz popular, que representa particularmente as classes médias rurais. O PFL tem que ser um partido de representação das classes médias urbanas. O PT seria o povão, mas o Lula é que consegue trazer voto. Sem o Lula, o PT se desfaz. Pode ser que um dia descubra novamente uma vocação. E o PSDB tem uma forte tendência de virar a UDN. Agora, alguns elementos do PSDB estão com uma inveja tão grande do presidente Lula...

FOLHA - O Serra?
LEMBO - Não creio.

FOLHA - O Alckmin?
LEMBO - É possível que nesse momento tenha, né?

FOLHA - E o Fernando Henrique Cardoso?
LEMBO - Suas entrevistas mostram um certo desamor ao Lula, e desamor e inveja são coisas comuns.

FOLHA - O sr. deu entrevistas quase diárias aos jornais. Já Lula ficou quatro anos sem dar entrevistas. O Serra falou muito na campanha, e agora tem evitado. Há sempre um batalhão de assessores em torno dos homens públicos. Por quê?
LEMBO - Acho um grande equívoco do político não se oferecer integralmente aos meios de comunicação. O presidente Lula, quando não se expôs à imprensa, equivocou-se, e eu diria mais: governante que não governa a partir dos meios de comunicação está equivocado. A melhor maneira de governar é ler jornal diariamente. Não sinopse, síntese, clipping, mas os grandes jornais do país. É um excepcional instrumento de governabilidade. O jornal mostra situações que os auxiliares querem esconder. Todos os governantes lêem clipping. Todos. Eu cortei. Mas tenho certeza de que, no dia 2 de janeiro, o clipping voltará.

FOLHA - E os marqueteiros?
LEMBO - Todo político fala hoje na pesquisa qualitativa [feita com grupos de eleitores]. Todo governo tem qualitativa. Eu nunca tive, nem qualitativa nem marqueteiro. O Muro de Berlim caiu, a Muralha da China é ente turístico. Porém, entre o governante e o povo hoje tem toda uma estrutura de segurança intelectual. O que torna o governante frágil. Os marqueteiros dizem o que fazer. E ele se torna uma marionete.

FOLHA - Ainda pensa em disputar eleições?
LEMBO - Só se for necessário. Mas sem interesse egoístico, só para a pregação de idéias.

FOLHA - De que mais vai sentir falta ao deixar o Palácio?
LEMBO - De nada. A minha vida sempre tem sido a de fechar a porta, ir embora e não me preocupar. Cada ciclo tem seus valores e suas tragédias. Eu vou-me embora.

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