--------------------------------------------------------------------------------
Nos últimos dias, venho sendo submetido a um linchamento moral que deveria preocupar os democratas de nosso país
--------------------------------------------------------------------------------
"Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo." (Fernando Pessoa, "Poema em Linha Reta")
NOS ÚLTIMOS dias, venho sendo submetido por setores da mídia e dos meios político, intelectual e artístico a um linchamento moral que deveria preocupar os democratas sinceros de nosso país. Ele oculta, sob a forma de protestos indignados contra minha suposta pregação do "fim da ética", uma corrente de intolerância e de farisaísmo político que se esforça para desqualificar todos aqueles que se identificam com o projeto político representado pelo presidente Lula.
Nesse episódio, tive pouquíssimas chances de defesa, de demonstrar o sentido completo da minha frase, extraída por repórteres ávidos e ansiosos à saída de um encontro entre artistas e o presidente: "Não se faz política sem sujar as mãos". "Sem pôr a mão na merda", de fato acrescentei, desnecessariamente, para delícia dos que buscavam munição para a renhida disputa eleitoral deste momento.
Embora a Folha tenha publicado minha carta aclarando o sentido das declarações, elas continuam sendo usadas como "prova" do colapso da ética entre nós. Por outra frase, também dita sob o calor das cobranças, um dos maiores e mais respeitáveis músicos brasileiros, o maestro Wagner Tiso, vem sofrendo igual massacre.
Os jornais e os jornalistas, os artistas, os intelectuais e os políticos que protagonizam esses ataques sabem de quem estão falando. Conhecem nossas trajetórias. Lembram-se de mim associado à trajetória do PT, mas também à memorável batalha de Betinho "Pela Ética na Política". Sabem que constatar as transgressões como inevitáveis não é o mesmo que defendê-las. É lamentável que o sistema político exija um pragmatismo que suja as mãos, mas é só pelo reconhecimento da existência dessas mazelas que poderemos superá-las.
Todos sabem que falei coisas óbvias, que dispensariam explicações em outro contexto e momento. Temos um sistema de financiamento privado de campanhas que a todos contamina. Com esse sistema, acaba a fronteira entre o público e o privado. Quem tiver mais acesso aos endinheirados arrecada mais, obrigando-se, nos cargos públicos, a responder com reciprocidade.
Enquanto fez campanhas vendendo bonés e estrelinhas, o PT não teve chances de chegar ao poder. Em 2002, diante do favoritismo de Lula, os cofres se abriram. E o partido se envolveu com forças das quais deveria ter guardado distância. Errou por fazer o que todos sempre fizeram.
Nem por isso devem ser linchados os que, mesmo condenando esse erro, defendem a reeleição de Lula pela qualidade do governo que vem fazendo, voltado para os mais pobres, dando-lhes mais poder de compra e alguma chance de ascensão social. Por estar vivenciando a melhora de suas vidas, e não por amoralismo, é que a maioria dos eleitores o apóiam, segundo as pesquisas. Nosso sistema político permite a eleição direta do presidente da República, mas não lhe garante a governabilidade. A profusão de partidos dispersa o voto para a Câmara. Lula teve 52% dos votos em 2002, mas o PT ficou com 17% das cadeiras.
Em busca da maioria, todos os presidentes têm sido obrigados a buscar acordos e alianças. Acabam dependendo do apoio das forças do atraso político, que, em troca, pedem cargos, verbas e mesmo recursos financeiros com a desculpa de que têm dívidas de campanha.
O PT caiu nesse antigo alçapão. Nem por isso se deve negar o direito da maioria dos eleitores de reeleger o presidente. Nem por isso é democrático e "ético" o massacre daqueles que, como eu, declaram o voto acreditando na liberdade e na democracia que construímos em jornadas de lutas -das quais também participei. Mais que hipocrisia, há na exploração de minha frase um misto de autoritarismo com oportunismo político.
É autoritária porque reproduz o germe de todos os sistemas totalitários: desqualificar os que não se alinham com o pensamento dominante. Para calar, o primeiro passo é desmoralizar. Assim fazem as ditaduras.
É oportunista porque explora minha condição de artista, e as identidades que isso acarreta, para auferir dividendos eleitorais. Há coisa mais suja que isso? Estamos chegando a um grau preocupante de intolerância. Depois das eleições, em nome da democracia, precisamos baixar as armas e recuperar a cordialidade, traço de nossa cultura.
PAULO BETTI , 53, é ator-diretor e produtor. Participou, entre outros, dos filmes "Lamarca" (1994) e "Guerra de Canudos" (1997). Foi professor de teatro da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
0 Comentários:
Postar um comentário
Meus queridos e minhas queridas leitoras
Não publicamos comentários anônimos
Obrigada pela colaboração