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domingo, 6 de julho de 2008

Os brasileiros não devem temer a inflação

A recente alta no preço dos alimentos elevou as taxas de inflação em todo o mundo. E alguns analistas e jornalistas já fazem previsões pessimistas para o futuro da economia brasileira. Sem razão, entretanto, de acordo com o professor Roberto Piscitelli, do Departamento de Ciências Contábeis e Atuariais da Universidade de Brasília, como mostra em entrevista que concedeu à Agência UnB.

De acordo com uma pesquisa CNI/Ibope divulgada nesta semana, o brasileiro nunca teve tanto medo da inflação no governo Lula. Temos razão para nos preocupar?

Não. Nossa situação não é dramática. Precisamos reconhecer que este não é o pior momento do governo Lula quanto à questão inflacio-nária. O início do governo, sim, foi uma grande dúvida, e a inflação aumentava no final do governo FHC (Fernando Henrique Cardoso), devido alguma incerteza acerca da política que o governo do PT ia adotar. Isso exacerbou as expectativas e fez que alguns comerciais reajustassem preços, e nós tivemos alguns meses com taxas não muito baixas de inflação. Agora, estamos em um segundo momento de receio, mas há muitas diferenças. Está ocorrendo um pouco de inflação em todo o mundo, e isso é conseqüência da globalização. Nossa economia é muito mais aberta, importamos e exportamos mais. Então, a influência dos preços desses produtos que circulam no mundo todo tende a se manifestar no mundo todo.

O ministro da Fazenda, Guido Mantega, insinuou que a comoção provocada em torno da inflação é fruto de alarmismo.

Concordo. Acho que há um certo alarmismo, principalmente em alguns setores da mídia. Tenho a convicção de que a situação não tende a voltar a ser o que era nos anos 80. O que não significa dizer que os preços não tenham se elevado mais que o desejado, que a gente não deve ter cuidados redobrados e que não se deve modificar hábitos de consumo. Essa expectativa ruim pode afetar os rumos da economia?

Sim. Muitas coisas em economia ocorrem como resposta às expectativas. Se você acha que a inflação vai aumentar, ela acaba aumentando, porque você faz tudo como se ela estivesse mais elevada e bota lenha na fogueira. E essa histeria pode ser exacerbada pelo comportamento das pessoas, de uma população pouco ou mal informada. Se você diz que a pessoa não pode levar mais de duas unidades de um mesmo produto no supermercado, ainda que ela fosse comprar apenas um, ela leva duas. Aí, sim, vai haver desabas-tecimento. O sujeito começa a fazer estoque em casa, agravando os problemas de abastecimento.

Por que a inflação é um tema tão delicado para o País?

A experiência brasileira em matéria de inflação foi uma das mais longas, persistentes e, eu diria até, consistentes na economia moderna. O Brasil conviveu mais ou menos quatro décadas (1950-1994) com uma inflação muito elevada, com índices que atingiam a estratosfera. No mês da posse do Collor, por exemplo, nós tivemos inflação de 84%. As pessoas que viveram aquela fase sabem o incômodo que isso trazia, o grau de incerteza, a impossibilidade de se planejar em longo prazo, a insus-tentabilidade de qualquer orçamento e a corrida em torno de aplicações financeiras, que tinham uma volatilidade muito grande. Além disso, essas aplicações, dependendo da sua natureza, variavam muito. Então as pessoas estavam sempre trocando de aplicação, que eram todas de curto prazo. As pessoas que viveram esse período têm pavor de lembrar.

Que seqüelas esses 40 anos de inflação deixaram no País?

A inflação é um mecanismo muito perverso, um mecanismo de redistribui-ção de renda às avessas. Alguns setores ganham com a inflação, mas a maioria, aqueles que têm renda fixa e recebem salários, são os mais prejudicados. Isso contribuiu para que a renda do Brasil se concentrasse tanto durante o século 20. Nós chegamos aos primeiros lugares do mundo em concentração de renda.

O atual aumento da inflação é causado apenas pelo aumento mundial no preço dos alimentos?

Não, o preço dos alimentos puxou os preços dos outros. Essa é uma característica da inflação: se suas causas iniciais não forem removidas, a tendência é que ela se propague, que contamine outros preços. Mas o impacto nos preços dos alimentos se dá de forma indiscriminada. Claro que algumas famílias, principalmente as de menor renda, são as mais afetadas. Por isso, a maior parte das pessoas não consegue repassar o aumento no preço dos alimentos ou se compensar desse efeito. Quem consegue, repassa.

Mas por que esse aumento no preço dos alimentos não causou tanto mal ao Brasil?

Esses aumentos foram e estão sendo sancionados. A economia está crescendo, ela está relativamente aquecida. Continua a haver redução do desemprego e aumento do número de vagas ocupadas. E se mantém, também, a expansão da massa salarial, dos empregos, que, ainda que não são tão bem remunerados. Só em um período mais longo isso possa sofrer algum refluxo. Também houve um aumento considerável da mão-de-obra formal, que paga melhor e dá mais segurança para o empregado. Isso, contudo, encoraja essa pessoa a assumir mais compromissos, e chega a cometer verdadeiros desatinos. Um mecanismo que foi muito importante para isso e perante o qual o governo tem se mantido muito a distância é o crédito.

Um controle maior do crédito evitaria cenários econômicos como o atual?

Sim. O crédito não é muito elevado em relação ao PIB (Produto Interno Bruto) do Brasil, mas ele cresceu muito em pouco tempo, principalmente entre as pessoas físicas, o consumidor final. As pessoas estão muito endividadas, contraindo crédito em condições inadequadas pelas mais diferentes razões. Chegamos a ter financiamento para compra de veículos em 99 meses. Isso insuflou o consumo. Esse processo tende a ficar mais complicado, porque, devido às incertezas sobre o futuro, as instituições financeiras vão não apenas cobrar juros maiores, como exigir prazos menores. Nós assumimos muitos empréstimos com prestações fixas por seis, sete anos. Mas, no momento em que a inflação aumentar, ela pode levar à quebra das instituições financiadoras.

Por que, então, o governo não controla o crédito?

Isso desagrada muita gente, e principalmente em ano eleitoral pode pesar negativamente. O Mantega falou, há alguns meses, que estava na hora de disciplinar o crédito. Mas quando ele falou isso, caiu uma montanha em cima dele, todo mundo criticou. Ninguém quer, porque o consumidor está muito satisfeito com esse crédito.



O Plano Real completou 14 anos nesta semana. O balanço é positivo?

Há pontos positivos e negativos. A estabilização foi um ganho. Restabeleceu a crença na poupança. Apesar do nosso caráter ime-diatista, a gente passou a pensar um pouco mais no futuro, a ter mais perspectivas a médio e longo prazo. Isso ajudou a reorganizar as finanças das empresas e foi um pressuposto para que se pudesse gerir de forma mais responsável as finanças públicas. Mas a outra face do processo foi esse extraordinário crescimento da dívida pública, particularmente a interna, comprometendo cronicamente uma parcela substancial de recursos orçamentários. Também há problemas na área cambial. O câmbio está muito valorizado de novo, e isso dificulta a manutenção do saldo comercial, contribuindo para desestruturar setores da indústria.

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